27.07.2016

Ettore Picchioni

Belo Horizonte (MG) 25/05/2015

Tudo começou em Stipes, pequena cidade medieval a quase 900 metros de altitude, parte da província de Rieti, no Lácio, onde se erguem as primeiras montanhas dos Apeninos que se estendem em direção a Abruzzo. É próxima do Monte Terminillo, a estação de inverno na qual os romanos costumam esquiar nos fins de semana. Stipes é um nome latino, coisa rara na geografia e na toponomástica italianas. A palavra tem dois antigos significados. Um se refere ao mastro perfeitamente vertical que se plantava na terra, ao qual eram amarradas as vítimas de tortura e suplícios. O ‘patibolum’ era a barra horizontal adicionada às ‘stipes’, formando a cruz usada para execuções. Então, Stipes é um nome perturbador por induzir à lembrança da paixão de Cristo. Mas há um outro significado da palavra, um pouco mais comum, que é pronunciado também como ‘stips’, como as poucas dezenas de habitantes de Stipes chamam sua própria cidade em seu dialeto. Ele indica uma quantidade considerável de moedas de ouro entregue como oferenda aos deuses. Este é um significado mais apropriado para a saga da família Picchioni, que emigrou da pequena Stipes para o Brasil sem nada no bolso, logo após a Primeira Guerra Mundial.

“Hoje em Stipes existe uma trilha para trekking intitulada, para torna-la mais apetitosa, às castanhas e às trufas. Mas quando meu avô Ettore vivia lá, antes de fazer a América, como se falava naquele tempo, além das castanhas, das trufas negras e algumas ovelhas, não havia nada. Meus antepassados eram extremamente pobres.” Quem fala é Celso Picchioni em seu belíssimo escritório de Belo Horizonte onde, com outros cinco irmãos, dirige a firma de câmbio e investimentos do mesmo nome: historicamente a primeira em absoluto a oferecer estes serviços financeiros no Brasil. “Stipes não é nem mesmo agora um município autônomo, mas nos primeiros anos do século XX era muito pior. Era uma pequena vila perdida entre as montanhas, que não tinha nem mesmo uma estrada calçada para chegar a Rieti. Ir a Roma, que agora está a apenas 80 quilômetros de uma cômoda artéria, era uma viagem inimaginável. Depois da primeira guerra mundial as condições de vida tornaram-se impossíveis e então meu avô Ettore armou-se de coragem e, com a irmã dele, meu pai e outros primos, decidiu tentar a vida na América: deixaram a vovó em casa, como era o costume da época entre os emigrantes italianos, e foram a pé, com as malas de papelão e um salame, até o porto de Civitavecchia, a mais de 200 km de distância. Ignorava se iriam na América do Norte ou do Sul. Embarcaram no primeiro navio que encontraram, assim, ao acaso”. A canção “Merica Merica”, praticamente o hino daqueles anos da grande emigração italiana nos estados ao sul do Espirito Santo, proclama nas palavras de Angelo Giusti (poeta morto em 1929 a Flores da Cunha, no Rio Grande do Sul): “da Itália nós partimos, partimos com nossa honra, trinta e seis dias de maquina a vapor, e na América chegamos’!” A honra era a única coisa que traziam consigo, e daquela dramática travessia os Picchioni nunca quiseram falar. A cada dia, no rastro do navio lançado no oceano, deixavam cada vez mais longe a terra amada onde tinham nascido, a lembrança da cascatinha do Fosso dos Vignaletti, a igrejinha de San Tommaso, a festa das “jatte”, as moças casadoiras, a caça ao javali… cada vez mais enevoado, cada vez mais pálido, até desaparecer completamente. Agora só restava olhar para o futuro!

“Chegaram em Santos e de lá foram encaminhados a São Joaquim da Barra, perto de Ribeirão Preto, para trabalhar nas plantações de café. Meu pai, que se chamava Ettore como o avô, e que mais tarde adotou o nome português de Heitor, não gostava daquele trabalho. Sentia-se, como era na realidade, igual a um escravo de cor. Trabalhar a terra era muito duro. A tia Lucrécia, irmã do avô, contava chorando como foi difícil deixar tudo em Stipes e enfrentar o Brasil. Mas alguns anos depois chegou a crise de 1929, e muitas fazendas de café se arruinaram. Os brasileiros não tinham a cultura da poupança que os italianos sempre tiveram. Os Junqueira, os proprietários da imensa fazenda Barão, se encontraram em calças de pano e sem nenhum dinheiro líquido. Alguns italianos puderam aproveitar do momento para comprar terras: de trabalhadores, mais ou menos pagos, se transformaram em patrões”.

Ettore, desse jeito, conseguiu fazer um grande passo adiante em seu desejo de “Fazer a América”, de abandonar para sempre a fome e a penúria. Ainda agora, aquelas terras compradas dos Junqueira, perto de São Joaquim da Barra, são chamadas de Fazenda dos Picchioni, mesmo eles não sendo mais seus proprietários. Na época, ele tinha tudo, incluindo um armazém, a igreja e a escola para os filhos dos funcionários. Foi a segunda derrota dos Junqueira, antigos “quatrocentões” a quem deve-se a criação do cavalo “Mangalarga”, e que já haviam sofrido o “Levante de Bella Cruz”, 13 de maio de 1833, com o assassinato de quase toda a família, do avô a um bebê de cinco meses, pelas mãos de escravos negros que tinham se rebelado contra os abusos dos “capitães do mato”.

“Meu tio Luigi teve quase imediatamente a ideia de fundar uma casa de comércio chamada Irmãos Picchioni. Aqueles foram os anos do resgate dos imigrantes italianos após o duro começo em que foram usados como substitutos dos escravos libertos em 1888. Meu avô começou a pensar e percebeu que os italianos foram enriquecendo após a crise de 1929 e tinham cada vez mais necessidade de dinheiro para organizar suas colheitas e investir em suas terras. Assim nasceu do nada um novo banco, a “Casa Bancária Irmãos Picchioni”. Eles emprestaram muito dinheiro aos imigrantes Italianos na área de Ribeirão Preto, e depois também foram para São Paulo, onde os italianos eram a maioria. Os negócios estavam indo a todo vapor, e meu avô montou também uma fábrica de chapéus e outras coisas. Parecia que todo o sofrimento deles estava agora relegado ao passado. Mas não foi assim!” Estourou a II Guerra Mundial e tudo que era italiano foi perseguido pela lei de Getúlio Vargas que expropriava os bens dos membros do Eixo (Alemanha-Itália-Japão) e proibia que falassem a língua de origem. Chegou o exército com armas e levou o banco e tudo aquilo que eles tinham. “Um desespero! O Ginásio Palestra Itália di San Paolo, naqueles anos, teve que mudar o nome para Palmeiras. Da mesma forma aqui em Belo Horizonte o Palestra Itália local teve que mudar para Cruzeiro, e o hospital dos italianos Felice Rossi mudou para Felício Roxo. Mas meu pai, que é o meu ídolo inconteste, prometeu que iria chegar mais uma vez naquela posição social da qual ele fora removido injustamente e com maus modos. O único italiano que se manteve um pouco afastado daqueles abusos foi o Conde Francesco Matarazzo. Graças a ele meu pai, apesar de ter nascido na península, pode ir trabalhar no banco Moreira Salles. Especializou-se na área de câmbio e de investimento, uma formação que se tornou infinitamente útil nos anos vindouros. Ele aprendeu muito no Instituto de São Paulo e se educou financeiramente”.

Como aconteceu a mudança da família Picchioni para Belo Horizonte? “Um dia, meu pai veio a BH para cobrar uma dívida. Ele tinha a capacidade de ver mais longe que os outros. Belo Horizonte fora fundada há relativamente pouco tempo e estava crescendo. Então, ele decidiu se mudar para esta cidade”, porque “adivinhou” que seu negócio poderia crescer dramaticamente, sem a forte concorrência de São Paulo. Foi uma percepção sensacional que revela sua imensa perspicácia e acuidade. Era o fim da guerra: era o ano 1945. Com a morte de Mussolini acabaram as sanções contra os italianos. Em Belo Horizonte ele abriu uma casa de câmbio, que tinha uma vitrine com notas e moedas que ninguém pensou em roubar. Aos poucos entrou no mercado de ações, de fundos públicos e desembaraço aduaneiro. Começou a crescer e nunca mais parou”. Naqueles anos, nasceram seus quatro filhos e duas filhas. Celso Picchioni é o terceiro e nasceu em 22 de janeiro de 1958. Tornou-se adulto exatamente com a chegada da Fiat em Betim. Ele formou-se em S. Paulo e aos vinte e um anos casou com uma napolitana da Mooca, o bairro totalmente italiano das fábricas Matarazzo. Depois voltaram juntos a Belo Horizonte.

E então chegou a Fiat. “Usando como base a agência de câmbio, começamos quase desde o início a comprar diretamente para o cliente no exterior. Abrimos escritórios em Hamburgo e em New York. Comprávamos o que a Fiat precisava, fechávamos o câmbio, embarcávamos a mercadoria e a entregávamos na porta. Atualmente existe uma nossa casa de câmbio em cada shopping de Belo Horizonte. Com a Fiat vivemos uma verdadeira revolução em toda Minas Gerais. Fizemos a logística de todas as máquinas, motores, componentes, que eram importados da montadora de Turim. Com base na agência, começamos quase imediatamente a comprar diretamente para o cliente no exterior. Abrimos escritórios em Hamburgo e Nova York. Comprávamos o que a Fiat queria, fechávamos o câmbio, embarcávamos a mercadoria e entregávamos na porta. Os italianos que chegaram com a Fiat trouxeram progresso. Atualmente, existe um nosso escritório de câmbio em cada shopping de Belo Horizonte, e antecipamos o futuro com um site onde é possível comprar ações on line. Na área do turismo nos tornamos representantes da American Airlines que tem voos de Confins para os Estados Unidos. É inútil, desde que chegou da Itália, a família Picchioni tem estado sempre na vanguarda, a fim de crescer. Mas lembrando sempre suas origens humildes”. O pai, Ettore / Heitor, satisfez o capricho de comprar uma mina de prata e mármore em Januária, ao longo do Rio São Francisco, no norte de Minas.

“Eu fui pela primeira vez a Stipes quando criança com meu pai. Lembro-me que eles tinham colocado uma grande mesa no meio da estrada e todos chegavam com pão, salame, vinho, trufas e carne de javali. Os vizinhos contavam histórias e riam. Meu pai também ria e chorava como um louco. Ele estava feliz, à sombra da igreja onde os dois Ettore, o avô e o papai, tinham sido batizados”. Nos últimos anos de sua vida (Ettore Picchioni morreu em 2004), ele quis coroar sua vida com algo que unisse mais Minas Gerais e a Itália. “Ele sentou-se no quarto e me disse: filho, vejo que os italianos e os nativos são muito lentos nesta região. Os velhos talvez sintam os resíduos da guerra, e os jovens cada vez mais perdem a sua cultura itálica. Minas é um lugar de montanhas, onde as pessoas são desconfiadas. Isso quer dizer que eles também fazem a cabeça dos italianos, que não saem mais da toca? No entanto, a história mostra que os italianos são um povo guerreiro, que sempre luta. Assim, foi fundada em 2002, a “Acibra”, a Associação Cultural Italo-brasileira de Belo Horizonte. Quando abrimos, um italiano tinha nos emprestado um auditório que parecia grande demais para a ocasião. Ainda agora eu tremo só de pensar novamente: o povo italiano veio em torrentes, de todos os lados, e transbordou do teatro. Lembro que meu pai, sorrindo, me disse-me suavemente: a honra está salva!”. A maior festa de rua de Belo Horizonte, hoje em dia, é a italiana, com a participação de 60 mil pessoas na região central da Avenida Getulio Vargas, no bairro Savassi, onde o tráfego fica fechado no sábado antes ou depois de 02 de junho, festa da República Italiana.

“Meus 3 filhos e 25 netos têm a obrigação de falar italiano. E todos estiveram em Stipes. A história tem que ser literalmente repetida em cada geração, não importa se a terceira ou quarta”. Celso não se lembra de quando o pai morreu, e não quer lembrar, porque diz que o pai está “sempre vivo e fica ao lado dele.” Porém, ele lembra muito bem quando levou as cinzas dele para Stipes. “Ele queria voltar para o lugar onde tudo começou. A paisagem mudou muito desde aquela época, com o belo lago de Turano no fundo, criado por uma barragem em 1939. No domingo, muitas pessoas vêm de Roma, em motocicleta, para comer no restaurante Tartufo, da minha prima Antonietta Picchioni. Agora, para comemorar a fundação de Roma (21 de Abril), o que fazemos aqui em Belo Horizonte, na Acibra, é um jantar idêntico ao que você pode comer na taverna de Stipes: bruschetta de tomate com ervas picadas, bruschetta de manjericão, salsicha italiana, chips de queijo parmesão com orégano e azeite de oliva, fettuccine all’amatriciana, spaghetti alla carbonara, tiramisu’ e salame de chocolate. Eu não sei se a palavra Stipes significa em latim um monte de moedas de ouro ou o poste da tortura, ou se em vez tem o significado que eles me disseram: que meus compatriotas são ‘primeiros a chegar’. Todos os três significados têm a ver com a família Picchioni, que sofreu para chegar em primeiro lugar para construir uma das casas de câmbio mais “respeitadas no Brasil”. E para a qual o lema italiano, “honra, trabalho e dignidade”, está impresso na pele de todos os seus membros”.