23.10.2014

Pietro Biagi

Sertãozinho (SP) 23/4/2014

“Meu avô, Pietro Biagi, era um verdadeiro filósofo. Gostava muito de conversar e sua característica principal era nunca reclamar de nada. Dizem que os velhos costumam reclamar sempre, principalmente das coisas que poderiam ter feito, mas que a vida não lhes permitiu realizar. Meu avô, não. De tarde, ele costumava sentar-se aqui, nesta cadeira, em sua casa de Ribeirão Preto, ao lado da catedral, e olhava as pessoas que passavam. Era profundamente italiano e uma pessoa muito positiva que sempre transmitiu uma ideia boa da vida. Meu pai e eu aprendemos muito com ele. A história dele é realmente riquíssima e oferece um exemplo maravilhoso para todos nós”. Quem fala com tanta emoção e admiração é Maurílio Biagi Filho, 71 anos, também chamado carinhosamente pelos amigos de Maurilinho, um dos maiores usineiros de cana de açúcar do Brasil, entrevistado em sua casa de dois andares da rua Tibiriçá 776, um magnífico sobrado construído em 1922 com materiais importados da Europa, comprado em 1941por 350 contos de reis pelo “nonno” Pietro. Agora, essa casa, pela vontade de Maurílio, vai se transformar em um centro da memória italiana desta região tão próspera do estado de São Paulo, onde, em um determinado momento da história, havia mais italianos que brasileiros. Cerca de 75% da economia de Ribeirão Preto e arredores ainda é comandada pelos descendentes da emigração proveniente da Itália, iniciada depois do ano 1870, que aqui “fizeram a América” como em nenhum outro lugar do Brasil.

Pietro Biagi chegou ao porto de Santos com o navio “Adria” em 1888, ano da “Lei Áurea” – que decretou o fim da escravidão. Tinha sete anos. Nasceu em 31 de maio de 1881 em Campagnola, um vilarejo perto de Pádua, no Vêneto. Era o mais inteligente dos filhos de Natale Biagi e de Elisabetta Ferrini: aprendeu a ler e escrever sozinho. A família passou pela famosa Casa do Imigrante de São Paulo e foi encaminhada a Itatiba, no entorno de Campinas, para substituir os escravos negros nas plantações de café, como todos os emigrantes italianos daquela época. Mas ficaram poucos anos e depois se transferiram para a região de Sertãozinho, nos campos de Ribeirão Preto, em uma fazenda chamada “Conceição”, ao lado da Lagoa do Cavalo. Essa fazenda existe ainda, embora não se saiba ao certo se o edifício principal seja o mesmo daquele tempo.

Maurílio faz o seu helicóptero girar muitas vezes em torno daquela pequena casa, rodeada por campos lavrados, e lembra, comovido, que tudo teve origem ali. O bisavô Natale montou, pouco tempo depois da chegada, uma olaria no sítio da Lagoa Itararé, junto com um pequeno alambique de cachaça. Era o começo de 1899 e Pietro trabalhou entregando os tijolos e as telhas com uma carroça e vendendo a cachaça artesanal, o melado e a rapadura, primeiro empreendimento dos Biagi no ramo da cana. No ano anterior tinha sido construído o primeiro engenho de açúcar da região por obra dos ingleses da fazenda Dumont, cujo descendente Alberto Santos Dumont faria falar de si no mundo todo por ser pioneiro da aviação.

Pietro era muito esperto e estava sempre atento. Tendo sabido antes dos outros que uma forte chuva de granizo havia provocado danos em Ribeirão Preto, ele comprou todas as telhas das olarias de Sertãozinho e as revendeu com lucro aos clientes desesperados para consertar os telhados quebrados. Casou-se em 10 de setembro de 1904 com Eugenia Viel, uma moça que também tinha nascido na Itália. O novo casal, conforme os costumes italianos, continuou morando na fazenda paterna de Itararé.

Em menos de 18 anos, sua prolífica esposa dava à luz 12 filhos. Todos eles receberam nomes misturados entre os estranhos apelativos vênetos e aqueles tipicamente brasileiros: pela ordem Amélia, Elisa, Gaudenzio, Olga, Osonia, Baudilio, Maurílio, Ângela, Isaura, Ida, Iris e Osvaldo. Mas em 1906, a mãe de Pietro morreu e o velho Natale, sem a companheira, perdeu o ânimo: não trabalhava mais e Pietro, como primogênito, teve de assumir a liderança do clã familiar.

Entretanto, estar empenhado em duas frentes, a velha e a nova família, não o derrubou, até fez com que multiplicasse os esforços para concretizar novos negócios.

Começou a pagar as prestações do arrendamento de uma olaria em Pontal, comprou os 29 hectares do Sítio Vargem Rica, no centro das férteis “terras roxas” da Alta Mogiana, e tornou-se fornecedor de cana de açúcar para o Engenho Central de Francisco Schmidt, a grande usina que mudou radicalmente os rumos da economia de Sertãozinho. Ao sobrevoar com o helicóptero toda esta zona, Maurílio nos mostrou a alta chaminé do Engenho Central, que desde poucas semanas abriga um novo museu da cana, e a esplêndida fazenda Schmidt, que tem ao lado uma antiga estação ferroviária, onde agora vive feliz, aos 92 anos de idade, sua mãe, Dona Edilah.

Ao lado da fazenda Vargem Rica, Pietro construiu uma cancha de bocha, jogo que era sua paixão desde sempre. Comprou também uma motocicleta para tornar seus negócios mais velozes. A vida da família melhorou tanto que em 1913 os Biagi admitiram uma empregada doméstica para ajudar Eugenia. Em 1915, alugou a Fazenda Barbacena, nas proximidades, porque havia nela muitas árvores a serem cortadas para fornecer madeira e dormentes às duas companhias ferroviárias que atuavam na zona, a Paulista e a Mogiana. Com o dinheiro obtido no negócio foi possível comprar a fazenda e plantar muita cana, tanto que chegou a pensar que poderia produzir açúcar ele mesmo. O sonho foi realizado em 1922 com a primeira safra saída da nova usina dos Biagi: 6,4 mil sacas de açúcar de 50 quilos cada.

O primeiro imigrante italiano a se tornar usineiro

Pedro, como era chamado pelos brasileiros, foi assim o primeiro imigrante italiano a se tornar usineiro no estado de São Paulo. Naqueles anos comprou o primeiro automóvel e a maneira com que se apresentou com o novo bólido à família faz parte do eterno folclore dos Biagi. Chegando à fazenda, tocando a buzina em plena alegria, percebeu que não conseguia parar o carro. O vendedor não tinha tido o tempo de ensiná-lo a brecar o veículo, tamanha era a pressa de Pietro para mostrar a novidade aos seus numerosos filhos. E assim começou a dar infinitas voltas em torno da casa de campo até esgotar o combustível. A história transformou-se em piada com a irônica lenda que Pietro nunca usava os freios em sua intrépida corrida para vencer na vida.

Mas neste momento, os imprevistos azares da existência poderiam ter arruinado tudo aquilo que Pietro Biagi tinha criado em 40 anos de duro trabalho. Porém, o acaso e a intuição premiaram o avô de Maurílio, que soube sair com habilidade das duas grandes adversidades que o atingiram, como atingiram também a todos naquela época: a crise americana de 1929 e, posteriormente, o decreto de 11 de março de 1942, com o qual Getúlio Vargas ordenava o confisco dos bens dos alemães e dos italianos, em meio à Segunda Guerra Mundial.

Em abril de 1929, Pietro vendeu a Usina Barbacena à vista e em dinheiro, por 1.800 contos de reis, quando, pela lentidão das comunicações, ainda não se tinha notícia do crack da bolsa estadunidense. Depois de alguns meses, acabou sendo o homem com a maior liquidez de Ribeirão Preto, enquanto os “barões do café” decretavam falência um depois do outro e os negócios das usinas de açúcar estavam reduzidos à zero. Ele teve então a possibilidade de comprar usinas e fazendas por pouco dinheiro dos proprietários arruinados. Foi o caso da Usina da Pedra e dos 700 alqueires da Fazenda Retiro, que deram origem em 1935 à Usina Santa Elisa. Quando estourou o segundo conflito mundial, um cunhado aconselhou-o a naturalizar-se brasileiro para evitar futuros problemas devido à ascensão e atos de Mussolini na Itália. “Mas ele não entendia aquilo”, ressalta Maurílio. “A polícia então confiscou o rádio no qual ele ouvia as notícias da Europa, e desconhecidos esvaziaram os pneus do seu carro. Ele ficou muito triste e no auge da raiva passou todos os bens aos filhos”.

Pietro não poderia ter feito coisa melhor. Os quatro filhos homens – e brasileiros – levaram adiante o negócio iniciado por ele. No nome das filhas deixou todos os muitos imóveis que tinha comprado em Sertãozinho e em Ribeirão Preto. Graças àquele doloroso decreto de Getúlio Vargas, fez uma boa transição com os filhos no momento certo e de maneira muito inteligente, separando seus campos de atuação de forma muito natural e harmoniosa. E ele, afastado à força dos negócios, começou a desfrutar: fazia quatro períodos de águas por ano, que naquele tempo era o máximo do lazer.

Voltou para a Itália, apenas uma vez, no final dos anos 1940, e incrivelmente encontrou os parentes de Campagnola cultivando beterraba, que na Europa substitui a cana para produzir o açúcar. Visitava uma vez por semana todos os filhos nas usinas e nas fábricas. No resto do tempo ficava em sua casa ao lado da catedral de Ribeirão Preto, que afinal de contas era o quartel geral dos Biagi. “A família era muito alegre”, recorda Maurílio. “Celebrávamos aqui todos juntos o dia das Mães, Natal e Ano Novo. Bebíamos muito, cantávamos muito com alguma das minhas tias que tocava acordeão. Tomávamos a “bença” do meu avô, a quem eu queria muito bem”.

Pietro morreu em 1973, com 91 anos. Mas estava feliz, porque era o primeiro a ir embora e deixar a família. “Meu avô me disse naqueles dias finais de sua existência, com aquela verve que nunca o abandonou: você que sabe fazer sempre bons negócios, compre uma funerária, porque quando parte o primeiro, depois é muito rápido com todos os outros. De fato, meu pai morreu em 1978”,  lembra comovido Maurilinho Biagi. De acordo com Edilah Biagi, a usina Santa Elisa foi a célula mãe, a partir da qual começaram todos os maiores negócios da família: usinas de açúcar e etanol, fazendas com milhares de alqueires de cana e outros cultivos, as metalúrgicas Zanini, enormes pomares de laranja, a primeira fábrica da América Latina de fertilizantes granulados, milhares de cabeças de gado e de vacas leiteiras, grandes marcas de cachaça, um centro moderno de inseminação artificial, produção de material odontológico, a Coca-Cola, e muito mais ainda.

“Fomos, ou ainda somos, não sei, os principais usineiros do Brasil”, diz Maurílio Biagi em seu escritório. “Pertenço à terceira geração dos Biagi no Brasil, uma família que hoje tem mais de 250 descendentes diretos. Tenho quatro filhos e seis netos. Sertãozinho, a cidade onde se encontra a maior parte de nossos empreendimentos, é a mais próspera do Brasil com a maior renda per capita. Incrivelmente, Campagnola, a aldeia veneta que Pietro Biagi deixou 125 anos atrás, é a exata tradução italiana de Sertãozinho. Não é fantástico?”

A fábrica de refrigerante mais bonita do mundo

Maurílio Biagi, filho de Pietro e pai de Maurilinho Biagi, foi protagonista de uma história de sucesso com a Coca-Cola há 65 anos, quando Pietro Biagi ainda estava vivo e ativo. Representantes da bebida, criada em 1886 por John Pemberton, na Geórgia, Estados Unidos, vieram propor que abrisse na região uma nova fábrica para produzir o  refrigerante.

“Lembro que em uma noite de 1948, meu pai chegou à fazenda Santa Elisa, onde morávamos, com uma caixa de Coca-Cola”, recorda Maurilinho Biagi. “Era uma bebida escura, que parecia um xarope. Ele a colocou sobre a mesa e disse que daquele momento em diante fabricaria esse “veneninho” em Ribeirão Preto.

Acrescentou, diante de nossa perplexidade, que aquelas pessoas vindas de Atlanta haviam assegurado que aquela bebida teria um futuro grandioso. Nós, crianças, engolimos aquela novidade líquida sem saber que a Coca sem gelo não tinha a menor graça. Na fazenda, estávamos acostumados a beber água, leite e nada mais. O que era aquela beberagem estranha? Permanecia um mistério”.

Maurilio Biagi, o pai, fundou com oito amigos de Ribeirão a Refrescos Ipiranga. Nos primeiros dez anos, no entanto, o negócio deu prejuízo e assim todos os sócios, e até os irmãos dele, se retiraram da estranha aventura. Maurílio, teimoso, ficou no leme da fábrica bancando todas as perdas até que, em 1954, o vento mudou e começou a recuperação, graças à campanha das tampinhas que ofereciam outra bebida de graça ao felizardo ganhador. Desde então, a expansão das vendas não parou mais.

A fábrica da Coca-Cola de Ribeirão Preto é a mais antiga do Brasil que ficou sempre nas mãos de um único empreendedor. Nos anos de 1970, o presidente mundial da Coca-Cola, Robert Woodruff, tinha visitado a fábrica e as outras instalações de Maurílio. Quando estava prestes a ir embora, disse que o parabenizava pela estrutura perfeita, arrumada e funcionando.

Porém, e ele não deveria se ofender por isso, tinha observado que a fábrica era a instalação menos bonita que ele possuía. Maurílio ficou surpreso e apostou com o presidente que em poucos anos construiria a fábrica de refrigerante mais bonita do mundo. E mandou imediatamente seus funcionários em viagem pelo planeta para ver o que havia de melhor e de mais avançado nesse tipo de fábrica. “Em 1979, a nova fábrica foi inaugurada por mim, porque meu pai morrera repentinamente alguns meses antes. Ganhamos a aposta: era a mais bonita do mundo e hoje a instalação de Ribeirão Preto é uma das maiores do Brasil”, destaca com orgulho o neto de Pietro Biagi.