19.11.2014

Inos Corradin

Jundiaí (SP) 15/12/2013

A vida intensa do grande mestre da pintura deixa a lição de que não se pode apagar nada da personalidade de um indivíduo. As boas e más experiências fazem parte do mosaico de cada um de nós

“Meu pai tinha uma amante. Chamava-se Artemide  – um nome grego. Minha mãe estava grávida e Artemide estava lendo um livro sobre a Grécia antiga. Então aquela mulher disse a ele: se você tiver um menino ele vai se chamar Inos, mas se vier uma menina será Artemide. Uma amante deve ser tratada com carinho, custe o que custar, portanto meu pai tinha intenção de obedecer, ainda que o nome feminino pudesse provocar muitos problemas com sua esposa… Mas por sorte eu é que nasci. E o nome Inos foi uma profecia inexorável para minha vida: em grego quer dizer vinho”.

Assim começa o irônico testemunho para o “100 Nonni” (o projeto de resgate da memória dos nonni (avós) da emigração italiana no Brasil, patrocinado pela Fiat) de Inos Corradin, um dos maiores pintores da arte brasileira, que em novembro completará 84 anos. Sua viagem da cidade natal de Castelbaldo, conhecida como a cidade das maçãs no Vêneto, a Jundiaí, onde mora até hoje, a aventura da viagem a Salvador sem um tostão no bolso, seus problemas com o álcool, a inacreditável história com o presidente Janio Quadros, suas 420 (até agora) exposições internacionais, são capítulos dos 60 anos de pintura de Inos durante os quais trabalhou como um louco do nascer ao por do sol, sempre buscando algo de novo para seu próximo quadro.

“Castelbaldo, com 1500 habitantes, era pequena demais para mim. Somos todos parentes. Por isso cheguei ao Brasil em 1951 para me soltar um pouco, com meu pai pedreiro e minha mãe costureira. Tinha 22 anos e quando vi pela primeira vez uma mulata, não acreditei nos meus olhos. Quis pintá-la nua e este foi o meu primeiro quadro brasileiro”, conta.

Mas o verdadeiro início de sua produção aconteceria dois anos mais tarde, quando foi a Salvador da Bahia com o amigo Geraldo Trindade Leal, também pintor. A cidade do Pelourinho naquele tempo era o núcleo das belas artes mais importante do Brasil: trabalhavam lá, entre outros, Mario Cravo, Pancetti e Caribé. “Todos me ajudaram a sobreviver” – lembra Inos sobre aqueles anos de pobreza e despreocupação. “Chegamos lá no dia 2 de fevereiro, a festa de Iemanjá, e perguntei a Pancetti o que era todo aquele pandemônio. Ele explicou que a festa era muito importante em Salvador, terra da religião afrobrasileira, e que as pessoas depositavam ao longo das praias muitas oferendas de comida para a divindade do Candomblé. Eu logo pensei: Oba, comida!!! Eu tinha uma fome atávica. Falei: Pancetti você tem um saquinho? Quer o saco para que? Para pegar alguma coisa da comida de Iemanjá: ela tem uma praia inteira para comer e será que não tem nenhuma sobrinha para mim? Enchi o saco e a barriga com frango misturado com vatapá e acarajé. Só tínhamos dinheiro para três dias de pensão. Geraldo não queria comer, porque – dizia –  não que ele acreditasse, mas nunca se sabe, com estas coisas de santos… Mas depois, vendo que eu comia com tanto apetite, ele também se fartou, já que quase tinha mais fome do que eu”.

Mario Cravo, que naquele tempo era um escultor importante e hoje, com noventa anos completados em abril, é talvez o melhor pintor vivo do Brasil, os acolheu com casa e comida em seu atelier “com uma gentileza inimaginável”. Aí Corradin preparou a sua primeira exposição pessoal. “O vernissage acontecia logo depois da inauguração do Banco da Bahia, ali perto, e todos vieram à minha mostra, inclusive o presidente Janio Quadros. Um construtor italiano com sobrenome Gatto, naquele tempo entre as pessoas mais ricas da Bahia, gostou dos meus quadros e comprou cinco. E aí os outros seguiram seu exemplo e minhas obras foram vendidas que nem pão quente. Um dos quadros foi comprado por Janio, que pagou por ele mas o deixou comigo porque naquele momento não podia levá-lo embora. Era um Cristo. Eu havia prometido que entregaria assim que fosse a São  Paulo”. Mas na capital paulistana Inos foi contratado como cenógrafo do balé para o quarto centenário de São Paulo e acabou por vender o quadro do presidente ao coreógrafo húngaro Aurelio Millos. “Tem momentos na vida em que a moral torna-se elástica”, brinca Inos, que nunca se separa de seus óculos escuros. “Janio era muito carismático: era incrível porque quanto mais ele bebia, mas lúcido ficava. Também pintava, mas sempre a mesma coisa: uma menina tendo no peito um emblema do Corinthians. Para não ter problemas de consciência, prometi que faria de novo o quadro para ele, em outra ocasião em que nos encontramos. Mas depois disso ele renunciou à presidência e assim, por motivo de força maior, não lhe dei mais nada”.

Inos bebia muito. Tinha começado com a cerveja, depois tinha acrescentado o Steinhaeger, e por  fim tinha chegado na cachaça e no whisky. “Fiz minha melhor cenografia em Rovigo, na Itália, no final dos anos 70, pintando uma tela imensa, de 11 metros por 8, durante muitos meses como Michelangelo na Capela Sistina. Aquela grande obra foi feita totalmente à base de lambrusco, que eu bebia de manhã até de noite. Em 1975, quatro anos antes, eu tinha ido apresentar minha primeira mostra na Europa, em Paris, na galeria Debret, que pertencia à embaixada brasileira. Era embaixador na época Delfim Netto, muito gentil mas não lembro mais nada porque vi a ville lumiere completamente bêbado. Cheguei a beber um litro de whisky por dia. Eu era catedrático do álcool desde os tempos em que voltei da Bahia de navio, com três caixas de Jujuba e Jacaré, a aguardente local que eu queria comparar com a cachaça de Jundiaí. Mas aquele cargueiro levou tempo demais e no final, entre a tripulação e eu não tinha sobrado nem uma gota”. Agora Inos não bebe há mais de 19 anos e esta “renúncia” é devida principalmente a sua esposa Maria Helena, com quem casou em 1960 e que lhe deu três filhos. “Minha prometida estava namorando o professor de matemática dela e os pais ficaram muito brabos porque ela tinha trocado aquele bom partido por um bêbado. Na época eu vivia nas florestas de Ibiúna, perto de São Paulo, onde com um sócio eu tinha montado uma fabriqueta de brinquedos de madeira. Logo depois do casamento, Maria Helena adoeceu gravemente de malária e precisou de uma transfusão urgente de sangue. Me ofereci imediatamente, mas o doutor me disse com tato que não podia dar meu sangue porque ela ficaria bêbada”.

Inos trabalhava a semana inteira nos brinquedos e controlava os serviços de uma grande serraria, mas o sábado e o domingo eram reservados à pintura. Até que um dia, depois de três anos, chegou na casa dele um marchand judeu com um carrão americano Buick e perguntou se ainda pintava, pois na casa de um amigo de Jundiaí ele tinha visto um quadro que tinha lhe agradado muito. “Mostrei a ele os  quadros feitos naquele período: eram 64”, lembra. “Ele comprou todos e depois me disse: você de amanhã em diante não trabalha mais aqui, mas vai viver em minha casa em São Paulo. Todos os quadros que eu fazia ele pagava. Foi realmente uma enorme felicidade. Depois veio o proprietário da Galeria André para quem trabalhei com exclusividade por 40 anos. Assim acabou minha fome’’.

Entre os muitos sucessos de Inos, devem ser arrolados a participação na Bienal de São Paulo, a decoração do navio de cruzeiro Costa Atlântica com 40 quadros e 800 serigrafias, e uma recente mostra no palácio do Congresso em Brasília para o MIB (o Momento Itália-Brasil 2012, em que está inscrito também o projeto “100 Nonni”).

“Me considero um pintor extemporâneo: na realidade já estou morto há muito tempo em relações aos autores chamados de contemporâneos” diverte-se Corradin, mostrando a bola colorida presente em muitos de seus quadros e que se  tornou o símbolo de suas duas pátrias, a Itália e o Brasil, com as cores das bandeiras, branco, vermelho, verde e amarelo. “Em minha vida não me arrependo de nada”, conclui o pintor.”Também o período de alcoolismo faz parte do percurso de minha pintura. Não se pode apagar nada da personalidade de um indivíduo. Tudo faz parte de nosso mosaico’’.

A amizade com Jorge Amado e Dorival Caymmi

Em Salvador, em 1953, Inos Corradin começou uma amizade que durou toda a vida com Dorival Caymmi e com Jorge Amado. “Caymmi me pedia de cantar para ele, com esta voz estridente que tenho na garganta desde sempre, um sucesso italiano daqueles anos, Luna Rossa, de que ele gostava muito. Nos tornamos muito amigos, tanto que numa ocasião me fez ouvir em primeira mão no violão uma canção que ele tinha acabado de compor, “João Valentão”, que foi gravada também por Elis Regina”.

Na casa de Amado e de Zélia Gattai, ele  passava quando ia ao atelier de Mario Cravo, que também morava no bairro do Rio Vermelho. “Eu, que não sou critico de arte mas admirador sincero que se comove diante da beleza da arte de Inos –  escreveu Amado – sinto-me à vontade de apontar o ambiente geral de romantismo difuso que transpira de seus quadros, ultrapassando a angústia e a solidão, uma flor, um barco, um cavalinho de pau, que interrompem o desespero da condição humana: em última análise o tema fundamental da sua arte. A pintura de Inos Corradin é presente que mistura infância e magia, entre luzes e sombras que nos envolvem e nos fazem sonhar… Quadros que nos obrigam a uma contemplação demorada, no enlevo da beleza que a sabedoria e as experiências de vida suscitam”.