Ele é o correspondente consular italiano em São Sebastião do Paraíso, a capital do bom café nas montanhas do sul de Minas Gerais, na divisa com o Estado de São Paulo. Viveu milhares de histórias no decorrer de uma vida que já dura 87 anos, desde seu nascimento em Gênova, em 11 de outubro de 1927, aos anos aventurosos de Tobruk, na Líbia, e até sua vinda ao Brasil, onde se dedicou a enorme diversidade de trabalhos, desde embalar pílulas farmacêuticas até padeiro na madrugada, de garimpeiro em uma mina de ouro a vendedor de carne ao longo de uma linha de trem, para chegar por fim no oásis feliz de São Sebastião para compartilhar com os cafeicultores locais como se cultiva este arábica das mil e uma noites, que hoje é o orgulho da produção agrícola brasileira.
“Os nativos de Gênova têm fama de ser muito inteligentes, mas de ter cabeça dura”, diz Alfredo Albieri, tomando golinhos de sua dose diária de cachaça em um bar de São Sebastião. “Eu sou prova tangível deste fato: cheguei até aqui, com minha esposa e com os meus filhos, com a firmeza dos herdeiros de Cristóvão Colombo. Quando estava passando fome em São Paulo, ameacei me jogar da ponte. Mas não estava falando sério: amo demais a vida!”
Alfredo se lembra do grande porto de sua cidade do qual partiram quase todos os emigrantes italianos para “fazer a América”, a cidade onde se fala o dialeto que mais se assemelha, no sotaque, ao português brasileiro. Ficou em Gênova até quando tinha sete anos.
O irmão mais velho dele, Rocco, já havia emigrado há tempos em Tobruk, uma cidadezinha da Líbia que tinha sido anexada como colônia da Itália em 1912. Lá ele montou um armazém que fornecia alimentos à Marinha e à Aeronáutica italianas, que tinham algumas bases na localidade. Ele ficou rico e em 1934 chamou o resto da família. “Chegamos lá com o navio Conde Verde e meu irmão deu trabalho para todos: ao meu irmão do meio, Aleardo, cedeu um açougue, à minha irmã Gina uma papelaria, a meu pai e minha mãe, um restaurante. Os negócios iam bem, porém em 1940 começou a Segunda Guerra Mundial. Tobruk, quase na divisa com o Egito, está numa posição arriscada. Então Mussolini pegou todas as crianças dos 7 aos 14 anos e as trouxe de volta para a Itália, em segurança, nas “colônias” de Rimini, Riccione, Cattolica, no mar Adriático daquela Romagna onde ele tinha nascido. Ficamos naqueles grandes hotéis confiscados pelo governo italiano até 1942: nos davam tudo, estudo, comida, roupas, proteção. Devo àqueles anos tudo aquilo que sou: muito mais que um perito agrônomo”.
Nos últimos anos da guerra Alfredino se reuniu com seus pais a Barga, em Garfagnana (Lucca), onde uma irmã tinha casado com um nativo toscano. Era bem no meio da Linha Gótica, os confins nos Apeninos onde os aliados estavam lutando com a resistência alemã. Era o lugar onde combateram os “pracinhas” do Exército brasileiro enviados por Getúlio Vargas à Itália. ”Era muito perigoso. Um dia minha irmã se aventurou fora de Barga para procurar leite para seu filho recém-nascido. Foi parada pelos “partigiani”, os soldados da resistência. Queriam matá-la: diziam que era uma espiã dos alemães. Mas graças a Deus, um comandante brasileiro interveio dizendo que não era verdade, e mentindo disse que a tinha visto pegar leite já há vários dias. Gina se salvou e para mim aumentou a simpatia pelos brasileiros. Ficamos naquele vilarejo dos Alpes Apuanos, de onde se extrai o mármore mais branco do planeta, até 1950”.
Um amigo de Barga tinha um tio no Brasil, em Bom Sucesso, Minas Gerais, e um dia comentou que aquele parente ficaria muito orgulhoso de recebê-los lá. A Itália passava por um momento difícil, semidestruída como estava depois de cinco anos de conflito. Então Alfredo, que em 1951 não tinha ainda 24 anos, decidiu partir. “Quando cheguei ao Rio de Janeiro me estranhei logo com um policial de fronteira que queria colocar a escrita Albiere, como se pronuncia aqui, no lugar de Albieri. Mas eu, como bom genovês, não deixei que ele fizesse isso. De qualquer jeito, ele me tirou dois nomes: eu me chamava Alfredo Umberto Natale Albieri. Um guarda alfandegário abriu minha mala e encontrou imediatamente as chuteiras com as garras para jogar futebol. Perguntou se eu era um jogador profissional, respondi que não, que era apenas um diletante, embora jogasse bem. Depois ele perguntou se eu era um político. Não, eu disse que tinha vindo só para trabalhar. Então, para minha grande surpresa, ele decretou: você no Brasil, se não for um jogador ou um político, vai morrer de fome! E aquela maldita previsão quase que deu certo”. Levaram cinco dias de viagem para chegar de trem até Bom Sucesso. Ele começou imediatamente a fazer o que sabia: diplomado em agronomia, andava pelas fazendas aconselhando os fazendeiros sobre como fazer para ter melhores colheitas de café. Mas ninguém dava a mínima bola para ele. E então resolveu ir a São Paulo à procura de trabalho.
“Em pouco tempo eu estava sem um tostão e sem trabalho. Desesperado, entrei na igreja do Sagrado Coração de Jesus, perto da Avenida Duque de Caxias, e pedi a um sacerdote que me benzesse. Era um alemão, que me respondeu que ele não benzia ninguém e que aquelas eram coisas de terreiro de candomblé. E eu então, novamente como bom genovês, prometi que não sairia daquela igreja enquanto ele não tivesse me abençoado. Afinal eu ganhei a parada e no dia seguinte, de manhã cedo, atravessei toda a cidade para chegar à fábrica Lorenzetti na avenida do Estado. Era muito longe. Eu não tinha nem 50 centavos para o bonde. Havia uma multidão fora do estabelecimento. Perguntaram se entre nós havia um torneiro. Não tinha nenhum. Então levantei a mão. Um chefe de obras me pediu para fazer uma peça no torno, mas eu confessei que nunca tinha visto uma máquina daquelas. A porta está aí e você pode ir, foi sua imediata e compreensível resposta. Mas, com a “genovesidade” de sempre, me recusei a ir embora: que se não me desse um trabalho eu me mataria, me jogaria de uma ponte, porque não tinha dinheiro, estava sozinho e não perderia nada. Outro chefe de seção que tinha presenciado a cena propôs que me desse uma chance. Em um canto tinha uma máquina de fazer parafusos que não funcionava há anos: se conseguir consertar essa máquina você terá um trabalho. Cada operário que passava por perto me dava um conselho: gire aquela chave, estique aquela correia, troque aquele fusível… Afinal da máquina saiu um parafuso. Mas está todo torto, objetou o chefe de obras. Sim, mas é um parafuso, respondi. Assim fui admitido”.
Alguns meses mais tarde Alfredo passou à Organon do Brasil, a firma farmacêutica na qual começou embalando pílulas, mas onde muito em breve se transformou no apreciado factotum do proprietário. “Ganhava muito bem, mais de 3 mil cruzeiros por mês, o que em 1954 era muito dinheiro. Imagine que pegava um avião DC3 de São Paulo a Lavras para visitar minha noiva Elzi, em Bom Sucesso. Uma passagem de ida e volta custava a quantia de 330 cruzeiros. Mas um dia pedi ao dono que me ajudasse a comprar uma casa nos bairros centrais de São Paulo. Ele respondeu que não faria isso. Então pedi as contas e fui embora”.
Voltou a Bom Sucesso onde em 1956 casou com Elzi, até hoje sua fiel companheira. “Compramos uma lojinha na floresta, a 18 quilômetros de Bom Sucesso, ao lado da ferrovia. Lá vivia Ivan Junqueira, um proprietário de terras muito famoso naquele tempo em Minas. Ele trabalhava somente com o leite e quando nasciam bezerrinhos machos ele mandava matar: utilizava o couro deles que, quando as vacas o cheiravam, produziam mais leite. Eu o convenci a dar-me a carne daqueles bezerros que ele jogava fora, e coloquei um cartaz ao longo da ferrovia: “Hoje tem carne especial!”. Os trens paravam e todos desciam para comprar: o maquinista, o chefe do trem, o vendedor de bilhetes, e até mesmo alguns passageiros. Ganhei tanto dinheiro que comprei uma casa na cidade”.
A esposa ficou logo grávida. Ela disse que era mais prudente esperar a criança em Bom Sucesso, caso acontecesse algo…. Alfredo ficou sozinho na lojinha, isolado no meio do campo. Mas um dia chegou um trem apitando loucamente. Parecia uma cena de faroeste. “Alfredo, teu filho nasceu!”, gritou o maquinista. “Peguei correndo o cavalo e fui a galope através da floresta. No fim eu tinha o traseiro cheio de bolhas de água, deste tamanho. Mas estava no sétimo céu”. Mais tarde foi enfermeiro em uma mina de ouro, fabricante de linguiça, sócio de outro italiano, Walter Gianni, em uma nova padaria. Fazíam os pãezinhos de manhã cedo, como na Itália, enquanto as outras padarias os preparavam somente de tarde: foi um sucesso. Mas o francês que tinha aquela mina de ouro, Roger Martin, que o estimava muito, tinha comprado as águas de São Lourenço, famosas termas no sul de Minas, e o chamou de novo para ajudá-lo. “Porém eu gostava mais da mineração de verdade. Eu tinha visto que queria implantar uma mineração a céu aberto a 30 quilômetros de São Sebastião do Paraíso e pedi para ir para lá. Ele me enviou a São Paulo para fazer um treinamento e depois me perguntou se eu queria ficar em Passos ou em São Sebastião, tudo custeado por ele. Eu disse que preferia “il Paradiso”. E foi assim que cheguei neste maravilhoso lugar. Abri uma empresa de transportes, a nacionalmente conhecida “Regina”. Por fim me aposentei e eis-me aqui.”
Com Albieri fomos conhecer a fantástica Cooparaiso (Cooperativa Regional dos Cafeicultores de São Sebastião do Paraíso), apinhada de visitantes franceses, os maiores clientes da entidade ao lado dos italianos da Illy. Vimos pilhas de milhares de sacos de café, máquinas para separar os grãos de diferentes diâmetros, um provador dos aromas de dezenas de qualidades de café colocadas em copinhos sobre uma mesa giratória… Alfredo está satisfeito por ter colaborado como agrônomo a este atual boom paraisense.
“Em 1974 voltei à Itália pela primeira vez”, assim Alfredo conclui seus milhões de histórias. “Meu patrão na época, um alemão, me ofereceu a passagem de avião para mim e minha esposa e mil dólares para gastar. Eu tinha três desejos: encontrar o túmulo dos meus pais, localizar minha sobrinha, a quem eu queria muito, e comer queijo gorgonzola e presunto cru. Chegando a Barga fomos direto ao cemitério. Encontramos o túmulo do meu pai com uma rosa vermelha em cima. Um funcionário do cemitério nos olhava de longe. Dei a ele 50 dólares para que mantivesse em bom estado aquela sepultura: não sabia quando poderia voltar”.
“Você é Alfredo? Não me reconhece?”, o estranho perguntou.”Sou o teu colega de banco da escola média. Eu sabia que um dia você viria: conservei este túmulo por 25 anos porque depois de 10 anos em geral são destruídos se ninguém vem visitá-lo. Aquela rosa sou eu que coloco todas as semanas”. Choramos abraçados. Depois fui ao “Giornale di Barga” para fazer a assinatura. Recebo ainda agora no Brasil aquela publicação. Digo meu sobrenome e aquele jornalista me olha surpreso: eu fui noivo de uma Albieri, se chama Anna e é médica bioquímica. Como o destino sabe preparar as coisas!”
“Mas não acabou ainda – e dá risada na sombra da inseparável “coppola” que cobre sua cabeça – Subimos no trem em Lucca para ir a Barcelona, pegar o avião para voltar ao Brasil. Aqueles eram os anos de chumbo na Itália, com o terrorismo, as bombas, as Brigadas Vermelhas. Bloquearam o comboio a noite inteira por receio de um atentado. Mas você imagina onde? Na minha Gênova. Era 11 de outubro, o dia do meu aniversário, e eu desci para comprar gorgonzola, presunto cru, um bolo e champanhe. Nunca havia feito um brinde tão comovido com minha esposa como naquela noite, diante da Lanterna, o antigo farol que é o símbolo de Zena (Gênova em dialeto): a cidade mais bonita do mundo”.
04.09.2015
Alfredo Albieri
São Sebastião do Paraíso (MG) 4/9/2015