01.10.2015

Umberto Cerri

Betim (MG) 01/10/2015


Ele nos recebeu ao meio-dia no jardim de uma casinha antiga de Betim, Minas Gerais,  na qual, com macarrão e molho ao sugo feitos por ele, acolhe para o almoço dezenas de funcionários dos seus estúdios fotográficos, espalhados aqui e acolá na cidade da Fiat, às portas de Belo Horizonte.

Umberto Cerri não aparenta seus 81 anos. Na entrevista quis falar em português, embora conheça muito bem o toscano, o dialeto mais puro da península que se tornou, desde os tempos de Dante, a língua italiana por antonomásia. Mas faz isso por polêmica, confirmando um secular provérbio que lembra suas origens de Pisa: “Melhor um morto em casa que um pisano na porta”. Ele faz a massa, mas não come: é por isso que deve conservar-se tão bem, com um corpo atlético e com quase nenhum volume indicando gordura na barriga. E oferece aos seus comensais, como em todo dia já faz alguns anos, panettone italiano na sobremesa.

“Nasci à sombra da torre de Pisa no dia 28 de setembro de 1933. A minha juventude foi bastante triste: era a época dura da Segunda Guerra Mundial. Não tivemos tudo aquilo que hoje têm todos os estudantes. Qual internet! Na minha casa não tinha sequer telefone. A guerra me deixou muito traumas. Me lembro do primeiro bombardeio de Pisa. Era 31 agosto de 1943. Os americanos atingiram a estação central dos trens. Houve centenas de mortos. Fugimos logo: nunca esquecerei aquela imagem do meu irmão mais velho que me levava embora de Pisa na barra da bicicleta”. A família à deriva vagou por toda a Itália centro-setentrional, seguida pelos aliados que subiam pela península, enquanto os alemães se retiravam deixando atrás de si somente terra queimada. O primogênito de sua mãe, Ezelina, de um primeiro matrimônio, estava desaparecido. Havia ficado isolado no sul com o seu pelotão anti-paraquedista depois que, no dia 8 de setembro de 1943, a Itália subitamente assina o armistício com os aliados, deixando milhares de militares abandonados à própria sorte. A mãe de Umberto estava desesperada. Tentou até mesmo contatar o Vaticano para ter alguma notícia. Mas ninguém sabia nada sobre aquela brigada-fantasma, separada do resto da Itália pelo desembarque aliado na Sicília. Umbertino não conseguia estudar: passando de uma cidade para outra, perseguido pelos bombardeios, foi obrigado a interromper duas vezes a escola elementar.

“Sempre fugindo da frente de batalha, com meu pai e minha mãe chegamos até Milão. Todas as noites tocavam as sirenes do alarme antiaéreo. Havia pessoas que viviam realmente nos refúgios antiaéreos. Tive a desgraça de ver, no Piazzale Loreto, Benito Mussolini morto, pendurado pelos pés. Uma loucura! Eu tinha só 12 anos, mas diante daquela cena tive vergonha de ser italiano: um povo que difundiu a civilização pelo mundo todo, não pode fazer isto. Este é um dos motivos pelos quais agora quero ser mais brasileiro que italiano”. Até o final do conflito, em 25 de abril de 1945, os Cerri não tinham recebido qualquer informação sobre o único filho que tinha entrado em combate. Ele tinha desaparecido no ar e, por isto, Ezelina estava ficando doente de tristeza. “Quando voltamos a Pisa, um mês depois da paz, o encontramos aí, diante de nossa casa no Lungarno, o caminho que acompanha o Arno, o rio que passa também por Florença. A casa estava em ruinas, quase derrubada. Minha mãe não esperava por isso, e pela alegria e a emoção teve um ataque de coração e morreu. Era jovem: tinha pouco mais de 50 anos. Aí acabou. Acabou tudo. Eu tinha nove irmãos. Eu era o mais novo. Cada um foi para um lado, todos perdidos pelo mundo”.

O pai dele, Guido Cerri, era fotógrafo da casa real italiana, e, naqueles anos do começo de novecentos, um pesquisador de vanguarda. Começou em Milão, sua cidade natal, como artista plástico, e depois levou o cinema mudo a Gênova e a Pisa. “Meu pai tinha se tornado fotógrafo pessoal do rei Vittorio Emanuele III. Os Savoia tinham uma propriedade perto de Pisa, no pinheiral de San Rossore, que ainda hoje é residência dos presidentes da República italianos. Por telegrama era solicitado a ir fotografar a família real. Saía de casa com a moto, sobretudo quando as princesas passavam as férias na Versilia. DE meu pai, a fotografia veio a mim como herança. A escultura foi para meu irmão Gianfranco. Éramos todos artistas. Mas Guido, para mim, não foi um bom pai”.

Umberto começou a trabalhar para um casal que havia perdido um filho na guerra. O tratavam como se fosse filho deles, pagavam bem e quem sabe o teriam deixado como herdeiro no fim da vida deles. Mas tinha no meio o problema do serviço militar. “Tentei de tudo para não prestar o serviço militar. Porém, no fim, vieram me buscar e me levaram à Academia Naval de Livorno para fazer os exames médicos. Eu era alérgico à guerra e àquele gélido tratamento. E então prometi a mim mesmo: não quero prestar o serviço militar, custe o que custar. Havia duas coisas que eu detestava: a batina do padre e o uniforme do soldado. Era o final de 1954 quando fugi para o Brasil com a ultimíssima emigração da Itália”.

Embarcou no transatlântico Provence em sua última viagem para o Rio de Janeiro, antes de ser sucateado. “Por que escolhi o Brasil?”, pergunta rindo e vestindo sua camiseta preta com o logo “bandeira italiana” de seu estúdio, e os jeans de teen. “Uma vez assisti a um filme rodado em Copacabana com todas aquelas moças belíssimas. Fiquei de boca aberta. Naquela noite refleti muito: na Austrália não tem mulheres, só cangurus, e na Alemanha não quero ir absolutamente: faz frio demais. Assim escolhi o Brasil, que se revelou verdadeiramente fantástico. Mas o início foi muito penoso”.

Alguns anos antes tinha aparecido no cenário carioca seu irmão Gianfranco, escultor excepcional. Mas quando Umberto chegou à então capital brasileira, encontrou uma situação terrível. “Ele era um verdadeiro artista, completamente desligado da realidade. Se pensar que tenha passado fome, você acertou. Gianfranco vivia em seu mundo e só: casou quatro ou cinco vezes, mas no fim, em 2009, morreu sozinho. Me dei conta muito cedo que eu deveria me virar sozinho. Havia um grupo de emigrados italianos que eu encontrava num barzinho de Copacabana perto da galeria Alaska. Me ajudavam. Um deles me propôs vender móveis de escritório. Fiquei tentado, mas tinha a fotografia em meu sangue. Lembro que um dia me trouxeram um jornal com o anúncio que estavam procurando fotógrafos no interior do Rio. Me emprestaram dinheiro e então eu fui: mas o pagamento era de 8 cruzeiros, menos de um salário mínimo. Fiquei tão decepcionado que pensei em voltar para a Itália onde pelo menos eu tinha um emprego fixo e ganhava muito mais. Mas apertei os dentes e por fim consegui. Posso dizer que aqui no Brasil me resgatei e me recuperei como pessoa dos horrores da guerra”.

Foi para São Paulo que já então era uma cidade dificílima pela concorrência de muitos fotógrafos muito bons. Por fim foi para a então mais simples Belo Horizonte e começou a fazer fotos publicitárias, fotos de eletrodomésticos para o jornal Estado de Minas, fotos para lojas e firmas. “Aí apareceu a oportunidade da Fiat. Fui chamado uma primeira vez para fazer fotos aéreas do novo estabelecimento. Aluguei um teco-teco e mandei as fotos para Turim. Elas gostaram. Foi assim que começou. Quando em 1973 mudei de BH para Betim, todos me diziam que estava louco: o que me fazia abrir um laboratório neste ponto periférico? Hoje temos três estúdios e talvez precisemos de mais um, em uma cidade emergente com mais de 400 mil habitantes. Estamos fotografando a nova fábrica de Goiana, em Pernambuco, com uma máquina que seguiu todos os trabalhos com um fotograma a cada meia hora. Um prodígio”.

São águas passadas todas as preocupações com a inflação de 84% ao mês, com o Plano Sarney, para o Plano Collor… “Atravessei incólume aqueles anos loucos. Como é possível administrar uma empresa com desvalorizações daquele tamanho?”, pergunta-se.

Mas a vida não era só trabalho. “Os amores sempre ajudaram a me distrair um pouco. Casei a primeira vez quando tinha 26 ou 27 anos. Fui muito feliz. Tive quatro filhos fantásticos de uma carioca maravilhosa. Mas a vida a dois sempre foi difícil por causa de minha profissão que me leva a viajar continuamente. E também eu não sou um santo. Hoje estou no terceiro casamento, com Cristina…”.

Umberto sorri enquanto saímos de um de seus laboratórios futuristas para olhar, pendurado no muro externo, um grande painel de seu amado irmão Gianfranco. “Era conhecido por todos como Franco e era incrível: tinha algo a mais. No final vivia em um atelier de Belo Horizonte, onde produzia esculturas fabulosas. Era o cantinho dele. Este de Betim é o meu”, afirma.

Neste cantinho, a vida e a arte da fotografia evoluíram com o passar dos anos. “Em poucos anos passamos das chapas de vidro de 24 centímetros, com as quais eu registrava casamentos em São Paulo, para uma máquina fotográfica digital de 60 megapixels, que é a menina dos olhos do estúdio. Foi uma mudança difícil de ser assimilada. Quando eu tinha oito anos meu pai me colocava num banquinho para misturar o líquido revelador, porque aquelas pesadas chapas de vidro de então não podiam ficar paradas muito tempo. Eu tinha um medo danado porque estávamos no quarto escuro e não se via nada. Eram 10 minutos para cada revelação, mas eu contava os segundos para me livrar daquele pesadelo.”

Umberto orgulha-se de ter sustentado a família e os sonhos com o ofício que tanto ama. “Se eu tivesse de nascer de novo, seria sempre um fotografo. Artista não ganha dinheiro. Repórter de guerra tem outra adrenalina, como o fotógrafo de nus femininos. Todos os tipos de fotografia são difíceis de fazer profissionalmente, mas me encantam. Eu não me vanglorio de nada da minha vida de trabalho. O que me deixa verdadeiramente orgulhoso, do alto de meus oitenta anos, é ter visto muitos profissionais passarem por aqui, na nossa formação, na nossa escola. Ajudei muitos deles a montar sua empresa própria, e introduzi na fotografia pessoas que hoje me reconhecem como mestre e que me respeitam muito. E o que é mais importante: são todos amigos”.