A cidadezinha de Maués, perdida nos meandros dos afluentes da direita do Rio Amazonas, a jusante do Rio Madeira, surpreende não apenas pela beleza da paisagem, pela harmonia inesperada de suas casas antigas, pelo guaraná e a sua festa, pelo perfume do pau-rosa que pode ser percebida em todo lugar. Tivemos nossa dose de espanto ao encontrar neste canto remoto da Amazonia uma ampla comunidade de oriundos italianos, orgulhosos de seus antepassados que no início dos anos 1900 foram os primeiros a fazer propaganda do guaraná no mundo, e a obter de uma árvore da floresta aquela essência fixadora de perfumes que torna inesquecível o Chanel N°5, que a atriz Marilyn Monroe tornou mítico.
“Maués é uma cidade curiosa porque tem uma tradição muito bonita e rica: a colônia italiana era grandíssima”, declara Raphael Faraco, 83 anos, ex-governador do estado de Amazonas, de seu apartamento em um arranha-céu de Manaus. Quando era menino vendia guloseimas nas ruas de sua cidade natal, Maués, e se fazia ajudar pelos clientes a fazer as contas porque não sabia contar. Era neto daquele Giuseppe Faraco, nascido em 1874 em Acquafredda, na costa da Lucania no sul da Itália, que em 20 anos, de 1902 a 1922, revolucionou a economia da cidade: Maués tornou-se uma das mais prósperas de todo o Brasil. “Aos 18 anos ele foi a Óbidos, onde havia muitos italianos”, conta Faraco. “Ele tinha um ‘regatão’, um barco com o qual girava pelos rios da região para vender de tudo um pouco. Não havia inflação, por isso naqueles anos acumulou um pequeno capital. No ano de 1902 veio a Maués para conhecer outro conterrâneo chamado Nicoló Filizola que iniciava exatamente então um comércio de guaraná. Imediatamente tornou-se sócio”.
Da capital do Mato Grosso, Cuiabá, chegavam tropeiros com tropas de burros, fazendo viagens de meses passando por Santarém, para comprar o guaraná dos índios que o preparavam em bolotas primitivas. Era um negócio bom porque os mato-grossenses, como hoje, adoravam aquele pó impregnado de cafeína. E os satere mawes eram a única tribo que extraia o guaraná da mata. “Giuseppe começou a financiar em larga escala os agricultores do interior para cultivar aquela fruta que parece um olho que te observa”, prossegue Faraco. “Ele mesmo plantou 50 mil pés de guaraná e em apenas duas décadas tornou-se o maior comerciante do município e o maior produtor de guaraná do mundo. Em 1922, o Brasil comemorava 100 anos da independência e a Rio de Janeiro houve uma grande exposição agro-industrial. Giuseppe participou dela com este produto que era completamente novo para a economia brasileira. Foi condecorado pelo governo da época como “o Rei do Guaraná” “com uma pesada medalha de ouro que agora está com um primo meu lá em Maués. Meu nonno foi um homem extraordinário”.
Ele fazia guaraná em bastão, uma barrinha que se rala com a língua de pirarucu, facilitando seu transporte e a comercialização. Começou a chamar a Maués muitos italianos, os Magaldi, Magnani, Dinelli, Cardelli, Desideri, Perrone, Michiles. Trabalhavam com ele e nas primeiras usinas de pau-rosa, uma essência descoberta pelos franceses em Caiena no final de 1800 que substituía o âmbar das baleias na produção de cosméticos. Já tinha providenciado a vinda ao Brasil dos seus três filhos, Biagio (Brás), Francesca Emilia e Giovanni, depois da repentina morte por enfarto na Itália de sua es- posa Carmela. “Os imigrantes italianos na Amazonia normalmente não traziam logo a família: vinham sozinhos primeiro”, observa Faraco. “Em Maués, Giuseppe tinha uma mulher, uma filha de índios, com a qual teve mais três filhos: Letícia Vitoria, Maria Dolores e Arthur Angelim. Ele reconheceu todos, assegurou sua educação e viviam todos juntos na linda casa que tinha construído, a maior do município. Tinha empregado como governanta Maria Magaldi, ela também de Acquafredda, que tinha dois filhos mas havia perdido o marido Paolo em Belém de febre amarela. Eu sou filho de Brás que veio da Basilicata com 14 anos. Ele ficou em Maués, mas os outros dois irmãos voltaram para a Itália”.
Voltaram com o pai depois da crise de 1929 que pós de joelhos todo o mercado brasileiro. Foi várias vezes para Acquafredda, mas em 1939 estourou a Segunda Guerra Mundial e ele não pode mais voltar a Maués. Todo seu grande projeto de comércio foi enterrado e ele morreu desesperado na Itália, em 1946, por causa de complicações gástricas. “Aqui na Amazonia ninguém se lembra dele”, lamenta Faraco que se emociona pensando no avo. “Em Maués tem apenas uma travessa secundária com o seu nome. A sua casa e loja em estilo colonial, na praça da igreja e em frente ao porto, foi descaracterizada e agora está em ruínas. Virou um caixote”.
Mas a semente da iniciativa plantada por Giuseppe Faraco ficou em Maués e deu seus frutos. Quem sabe algo da história são as irmãs Magnani, de 85 e 82 anos, que se lembram admiradas das vicissitudes do pai delas, Enrico, corajoso explorador e pesquisador de novos comércios, vindo de Lucca nas pegadas de Faraco. Maria Ligia e Maria Antonietta são ambas professoras aposentadas que vivem em uma belíssima casa da época, que tem na frente uma árvore cheia de flores vermelhas, no centro de Maués. “Os tios Giuseppe, Rodolfo, Colombo, e nosso pai, chegaram da Toscana a São Paulo onde iniciaram um negócio”, recordam as irmãs sobre aqueles anos da Primeira Guerra Mundial. “Giuseppe estava montando uma farmácia, Rodolfo voltou à Itália para combater nas trincheiras. Então Enrico e Colombo vieram a Maués para conhecer este famoso Faraco. Buscavam a borracha natural ao longo de rios ainda inexplorados, mas o irmão dele, depois de um ataque de índios, não quis mais ficar. Enrico, porém, que tinha a aventura no sangue, ficou”.
Enrico Magnani deu um nome a muitos rios e lagos amazônicos. Viajava com um barco a vapor de 14 metros, que muitas vezes voltava ao porto carregado de flechas atiradas pelos índios, que na época eram muito belicosos. Passava três ou quatro meses naqueles rios onde nenhum homem branco tinha estado. Certa vez passou de um rio a outro pelas cabeceiras como no filme Fitzcarraldo e encontrou uma vastidão de seringueiras. “Mas alguns dias antes os mateiros que estavam com ele haviam dito que não queriam continuar”, conta Ferdinando Desideri, que o conhecia bem e que em junho vai completar 101 anos. “Ele então sentou num tronco com a espingarda pronta, diante de uma cachoeira. E os chamou. Disse a eles que teriam abandonado ali, entre as feras e índios acusados de canibalismo, um italiano de caráter. Mas um italiano que se envergonhava muito, porque se voltasse com as mãos vazias não poderia pagá-los. Então aqueles caboclos prosseguiram, encontraram muita borracha e todos recomeçaram a ser felizes em suas vidas. Aquela cascata foi por ele batizada de Cachoeira da Revolta. Era um tipo que não tinha medo de nada”.
Depois de Faraco, fez sociedade com Francesco Antonio Magaldi, filho daquela terrível dona Maria que era governanta de Giuseppe, e casou com a irmã dela, Irene. “Girava por Maués com a única bicicleta que havia na ci- dade naqueles tempos, de marca inglesa”, puxa da memória o neto Otavinho Magnani. “Era um homem espoletado, sem formação acadêmica, mas extremamente inteligente’’. A ele se deve a invenção das máquinas para beneficiar o guaraná que são usadas ainda hoje nas fábricas de Maués. Uma descascadora, um pilão com pás de cumaru para evitar que o ferro faça enferrujar o guaraná, um moedor, um fumigador a carvão no qual o pó marrom escuro passa 20 dias: todas estas engenhocas foram pensadas e realizadas pelo velho Enrico, filósofo e gozador. No Museu Goeldi de Belém está exposta uma máquina com o nome dele. “Todas essas pérolas de engenharia mecânica permitem produzir 250 quilos de guaraná por dia”, explica Otavinho. “Antigamente, à mão, faziam apenas cinco quilos. Aqui em Maués chegamos a tratar mil toneladas de guaraná por ano. Nos anos 1940 havia oito usinas. Agora a maior parte do guaraná é vendida à Ambev. Temos a concorrência das plantações da Bahia, mais baratas, mas aqui o guaraná tem 4% ou 5% de cafeína, enquanto na Bahia não chega a 2%”, explica.
Zanoni Magaldi, hoje com 78 anos, é o herdeiro de Francesco Antonio (1900-1974) que com Enrico Magnani compartilhava a sociedade, mas não a garra. “Ele era conservador, metódico e preocupado com tudo”, diz o filho. “No começo entrou em sociedade com um hebreu marroquino, Salomão Levi: trabalhavam principalmente com couro de jacaré açu. Aqui tem crocodilos grandes, de até sete metros, que já mataram muita gente. Depois entrou Magnani e com ele comerciavam borracha e guaraná. Mas a melhor oportunidade foi construir uma usina de pau rosa”.
Antes, para retirar a essência, cortava-se a árvore inteira que era transportada com enormes sacrifícios da floresta. O docente da Unicamp, Lauro Barata, tinha descoberto na metade dos anos 2000 que era possível extrair a essência das folhas e dos ramos podados. Com isso, o linalol sintético, produzido a partir do petróleo nos Estados Unidos e que por volta de 1960 provocou a queda das exportações da essência vegetal, agora está perdendo mercado em favor do extrato natural das plantações amazônicas. “O pau rosa voltou com força nos últimos anos como fixador e também como aroma. Vendemos a essência por até US$ 130 por quilo nos Estados Unidos e na Europa”, conclui Zanoni, dono da única usina de Maués e de culturas ecologicamente corretas.
Esse é o fantástico universo italiano de Maués. Aos três atores fundamentais dessa epopéia, Faraco, Magnani e Magaldi, é possível acrescentar muitos outros para marcar a presença dos oriundi na belíssima terra perdida no fim do mundo. “Os italianos de Maués enfrentaram o calor, as serpentes, as onças, os pernilongos, deste incomodo posto amazônico, mas nunca quiseram deixa-lo”, resume Rafael Faraco. “Caso emblemático é aquele de Francesco Dinelli, por muitos anos o único funileiro da cidade. Era de Turim e a mãe dele tinha amamentado Francesco junto com o herdeiro ao trono da Itália, Vittorio Emanuele III. Este Savoia, quando se tornou rei, escreveu uma carta em que pedia que ele voltasse à Itália. Mas ele não quis mais voltar: a poesia desta linda aldeia à margem de um lago que se espelha no céu infinito havia exercido seu encanto para sempre.”