A família Bauducco deixou a Itália depois da Segunda Guerra Mundial e introduziu o panetone no Brasil. Hoje, produzem 65 milhões de unidades por ano e exportam para o mundo inteiro, mantendo o toque natural na elaboração.
O panetone aquela delicia italiana que conquistou nos últimos anos o apreço de todos os brasileiros na época do Natal, nasceu em Milão nos longínquos anos de 1400. Havia na época a tradição do “ciocco”, a árvore cortada como um grande pedaço de tronco que ficava ardendo a noite inteira na lareira desde a véspera de Natal até o dia de Reis, e sobre o qual eram assados três grandes pães de farinha de trigo, para significar a trindade divina. A lenda nos conta que Ludovico Sforza, chamado de Moro, que foi duque de Milão até 1499, tinha encomendado aos seus cozinheiros um grande banquete de Natal para o qual estavam convidados muitos nobres de toda Itália e de outros países.
O jantar transcorreu muito bem, mas a sobremesa, tendo ficado no forno por tempo demais, estava carbonizada. Então um jovem ajudante de cozinha chamado Toni, diminutivo lombardo de Antonio, vendo o desespero do chefe, propôs uma solução: “Hoje de manhã preparei este doce com as sobras que encontrei na despensa, um pouco de farinha, manteiga, ovos, um tanto de uva passa e um pedaço de casca de cidra. Se não tiver outra coisa, pode levá-lo à mesa”. O chefe dos cozinheiros, tremendo de medo, ficou atrás da cortina para espiar a reação dos convidados, que estavam extremamente entusiastas daquele novo doce natalino.
O duque quis saber o nome daquela delícia e o cozinheiro, envergonhado, revelou que era o “Pan do Toni”, feito pelo ajudante. Daí vem o termo panetone. Mas foi somente na metade de 1800 que se acrescentou o fermento, e foi nos anos 20 do século passado, em plena Belle Époque, que Angelo Motta iniciou a industrialização do panetone em caixas com o desenho do Duomo (Catedral) de Milão. Motta e Alemagna foram as firmas pioneiras em Milão na difusão do panetone. Vários anos atrás, antes de morrer, o pioneiro Alemagna viajou a São Paulo para se encontrar com um confeiteiro de Turim que tinha sido o primeiro a lançar o panetone no Brasil. Chamava-se Bauducco. E Alemagna congratulou-se com ele.
“Tudo, entretanto, é devido à audácia de meu pai Carlo e à obstinação de minha mãe Margherita, que vieram comigo a São Paulo vindo de Turim na metade do século passado. Não sabiam como poderiam realizar o projeto deles de levar o panetone para o outro lado do oceano, mas contavam com uma força extraordinária, comum a todos os imigrantes italianos no Brasil: o trabalho.”
Essas palavras orgulhosas e comovidas são de Luigi Bauducco, 82 anos completados no dia 24 de 2014, entrevistado pelos “100 Nonni” em sua megafábrica de panetone e de biscoitos na cidade de Extrema, em Minas Gerais. “Fui criado em Turim por uma empregada, porque minha mãe e meu pai trabalhavam sempre”, lembra Bauducco, filho único nascido em 1932. “Éramos pessoas simples. Minha avó, Giuseppina Ghiotti, era costureira. Quando minha jovem babá voltava nos campos do Piemonte para as férias de verão, ela ia junto, carregando a máquina de costura, apesar de ser muito pesada. Quando chegava à casa da fazenda, com os retalhos que tinham sobrado das roupas que ela costurava, fazia roupinhas multicoloridas para os irmãozinhos e irmãzinhas da minha babá, e todos ficavam felizes”, lembra.
No entanto, logo chegou a Segunda Guerra Mundial para desmanchar esses momentos felizes. “Meu pai não foi convocado para o serviço militar porque tinha uma lesão na mão, resultado de um acidente de trabalho aos 14 anos, quando trabalhava em uma firma de refrescos e uma garrafa de vidro explodiu. Por isso empregou-se em uma torrefação de café. Durante a guerra, toda quinta-feira ia a Milão, porque todos aqueles que lidavam com cereais e com café se encontravam là uma vez por semana. O café era escasso e então se usava um substituto à base de cevada. Foi em Milão que conheceu o panetone, uma descoberta que seria muito útil depois da guerra.”
Sua mãe, Margherita Costantino, cuidava da contabilidade e do abastecimento na própria empresa. “Era cinco anos mais velha que meu pai, mas ninguém nunca percebeu. Tinha um caráter forte, herdado dos pais dela: imagine que quando ia passear com o pai e a mãe no parque do Valentino, em Turim, caminhava à frente deles, e o vovó a admoestava para que ficasse com as costas rectas e a suturava com uma varinha de bambu. Quando chefiava a administração, com a nossa empresa já encaminhada no Brasil, fazia todos os seus subordinados tremerem: sempre achava algum erro nas contas”, recorda Bandulho.
Para evitar os bombardeios que visavam principalmente as fabricas da Fiar e a estacado ferroviária de Porta Nova, o jovem Ligo entrou em um colégio interno em Guino e voltava para rever os pais a cada fim de semana, com uma hora de trem. Depois, terminada a guerra, quando os Bandulho abriram uma loja onde vendiam misturas de café em envelopes ou em xícara, ele se inscreveu em um instituto para agrimensores, para um curso que não terminou porque no terceiro ano emigrou para o Brasil.
“O último empregador de meu pai chamava-se Valinotti. Tinha um irmão que possuía uma fazenda no Brasil e que o abastecia de café. Esse senhor, durante uma visita a Turim, tinha contado a meu pai que no Brasil havia muitas padarias que produziam artesanalmente pão francês, mas que não tinham máquinas para faze-lo. Então ele comprou 40 maquininhas para fazer o pão em uma fábrica perto de Milão e as mandou por navio. Depois ficou aguardando uma resposta, se as tinha recebido, se tinha começado a vende-las. As tais máquinas tinham custado quase todas as suas poupanças, mas essa carta nunca chegou”, relata. Era o ano de 1948 e pelo acontecido pode-se ver o espírito de iniciativa e a vocação internacional de Carlo Bauducco, já acostumado a rodar pela Itália inteira com sua mistura de cafés provenientes do Brasil, da África, do Equador e da Colômbia: resolveu partir imediatamente para pedir contas pessoalmente daquelas máquinas ao fazendeiro italiano.
Chegou por volta do fim do ano nas terras de São Paulo, mas a resposta foi que o dinheiro recebido pela venda das máquinas tinha sido investido na plantação de café que estava atravessando um período ruim. Porém, ainda restavam 20 máquinas a serem liberadas na alfândega do porto de Santos. Com a ajuda de um senhor que tinha conhecido no navio, conseguiu liberar aqueles maquinários e foi vende-los em São Paulo, onde a comunidade italiana era predominante: naquele tempo os principais jornais locais eram dois, o Estado de São Paulo em português, e o Fanfulla, em italiano, e vendiam o mesmo número de exemplares.
“Era Natal. Meu pai percebeu maravilhado que, embora houvesse tantos italianos naquela cidade, faltavam os panetones. E brilhou alguma coisa em seu cérebro que viria a inspirar a vida dele e aquela das gerações Bauducco ainda por vir. Voltou a Turim completamente decidido a vender tudo e transferir-se com esposa e filho ao Brasil. E isso, na Itália, já tínhamos uma posição bem estabelecida, uma loja bem no centro, perto do tribunal e da prefeitura, e uma autentica casa de campo, com quatro mil metros quadrados de terreno e com o adorado jogo de bochas, em Realia, a três quilómetros da Mole Antonelliana. Não teve contestação: é preciso dizer que os italianos do pós-guerra sentiam-se livres de um jugo de decénios, e eram muito mais abertos e ousados que os italianos de hoje”, diz.
Voltou ao Brasil no ano seguinte, de avião, um Lancaster que levava 36 horas para completar a travessia. Trazia consigo um confeiteiro de Turim, Armando Poppa, que mais tarde abriria a famosa doçaria Cristallo em São Paolo, e, guardada cuidadosamente em uma marmita coberta com um pano molhado, a massa mãe, o fermento natural, a matriarca de todos os panetones passados, presentes e futuros, que ainda hoje é conservada cuidadosamente, viva, em um “bunker sagrado” da fábrica de Extrema. “Minha mãe havia dito que enquanto minha avó, que morava conosco, estivesse viva não deixaríamos Turim. Uma das últimas lembranças que tenho de minha cidade é daquele dia 4 de maio de 1949, quando o avião que trazia o time de futebol do Grande Torino caiu na colina do Santuário de Superga. Eu tinha uma Vespa e queria ir ver, mas minha mãe me convenceu a não ir. Nos funerais, em que toda a cidade de Turim participou, sobre cada caminhão da Fiat havia o caixão de um jogador. No ano seguinte, 1950, minha avó faleceu e eu e minha mãe embarcamos em Génova no navio Conte Grande a caminho daquele país distante e misterioso do qual ignorávamos tudo. Eu tinha 18 anos”, relata.
Naqueles tempos a lei brasileira estabelecia que um estrangeiro deveria ter um sócio brasileiro para abrir uma firma. Carlo Bauducco tinha encontrado três sócios, na figura dos três irmãos Lanci, filhos de um italiano que produzia a massa “3 Abruzzi” no bairro Bom Retiro. Pouco tempo depois, a família Bauducco mudou-se para um galpão com uma casa na parte de cima na Rua Afonso Pena, ao lado da fábrica dos três irmãos e ali, entre mil atrasos e testes, foi produzido o primeiro panetone experimental que se chamava “Panettone 900 Lanci”, sendo que o 900 vinha da máquina de alimentos que o pai de Luigi havia trazido da Itália.
“Era o ano 1950. Hoje, 64 anos depois, produzimos 65 milhões de panetones por ano. Somos os maiores produtores mundiais e exportamos do Brasil para 50 países do mundo, dos Estados Unidos ao Japão, da América Latina a Angola. Mas foi muito duro, especialmente naqueles primeiros anos. Trabalhávamos mais do que na Itália. Em Turim, aos domingos, descansávamos e meu pai aproveitava para jogar bochas com seus cinco irmãos na casa de campo de Realia. Aqui, quando dois anos depois tínhamos aberto uma loja só nossa na Celso Garcia, no Brás, porque nesse meio tempo tinha caído a lei que impunha sócios brasileiros, trabalhávamos até no domingo, porque é nesse dia que se compram os doces para levar para casa. A experiencia com os sócios tinha sido uma falência total e meu pai em determinado momento queria voltar para a Itália, porque não aguentava mais. Foi preciso que minha mãe o convencesse a resistir no Brasil. Não foi fácil”. Foi em 1952 que apareceu pela primeira vez o nome “Bauducco” nos panetones, nos caporali (biscoito champanhe) e nos biscoitos de massa folhada da pequena loja que foi a origem do grande império da família piemontesa.
Carlo, agora com a ajuda do filho Luigi, começou a fazer propaganda no rádio em italiano com a apresentadora Antonella Flavioli, e antes do Natal
tinha mandado um avião distribuir folhetos publicitários na área central da cidade, no entorno da Praça da Sé e no Theatro Municipal. Um certo Briccarello, também piemontês, tinha um primo artista que idealizou as primeiras embalagens de panetone com o desenho da Torre de Pisa e do Duomo de Milão. Em 1956 outro piemontês de Saluzzo, que fabricava móveis de estilo, fez com que os Bauducco comprassem um terreno de três mil metros quadrados em Guarulhos, onde surgiu a primeira fábrica que ainda hoje produz o biscoito wafer.
“Em 1958, casei com Carla, ela também filha de confeiteiros de Turim da Dulca, marca muito famosa em São Paulo. Os pais dela tinham estado na Abissínia no tempo da colónia italiana e tinham comprado caminhões para fazer o transporte das mercadorias do porto de Massaua até Addis Abeba, na atual Etiópia. Percorriam um caminho estreito e íngreme: quando se estragava um caminhão, eles o jogavam pela ribanceira com toda sua carga, para não parar a fileira dos outros. Os Dulca me disseram que em Addis Abeba havia nativos que falavam piemontês. Depois da guerra se transferiram aqui e faziam o trecho Santos-São Paulo: mas aqueles veículos eram velhos demais e não tinham pecas de reposição. Então eles lembraram que em Turim originariamente eram confeiteiros e assim abriram uma loja de doces. Também os Dulca nos ajudaram muito: tivemos muita sorte aqui em São Paulo, porque encontramos boas pessoas italianas que sempre nos apoiaram. Voltei à Itália pela primeira vez em 1960, dez anos depois da minha partida. Eu e Carla temos três filhos, Massimo, Silvana e Carlo Andrea, e uma penca de netinhos”, continua Bauducco.
É de 1990 a fábrica em Bonsucesso e de 2000 a grande instalacão de Extrema. Em 2001, a empresa adquiriu a Visconti e é recente o acordo com os chocolates Hersheys para uma fábrica em São Roque. A Bauducco hoje é uma holding que se chama Pandurata, uma homenagem às flores da arvore de mesmo nome plantada em todo lugar em suas instalações.
“A empresa se modernizou e alcançou níveis de excelência”, constata Luigi Bauducco, sempre sorridente, vestido com simplicidade, com uma camisa comum, calcas comuns e raramente com uma gravata, mas sempre impecável, como um verdadeiro cavalheiro de Turim. “Em 2012 festejamos nossos 60 anos de história. Meu pai e minha mãe morreram na primeira metade dos anos 1970. Para recordá-los, quando viajo a Turim, gosto de ir visitar aquela esquina entre as ruas Barbaroux e Botero onde, perto de uma lojinha genovesa que fazia a farinata e o castagnaccio (doces típicos), estava a nossa loja de café. Agora no seu lugar tem um restaurante, mas me parece ainda que sou capaz de ouvir a voz de meu pai Carlo chamando Margherita naquela atmosfera mágica do Natal. Não é à toa que o logo da Bauducco tornou-se hoje em todo o Brasil, também com a ajuda da TV Globo, um sinonimo da palavra família. Uma bela família, pode acreditar”, conclui.
O segredo está no fermento
Na massa mãe reside o segredo da qualidade do panetone, devido ao processo da fermentação natural. Esse é o segredo da Bauducco para produzir panetones macios, melhores até mesmo que a maior parte dos mais de 100 milhões de panetones produzidos por ano na Itália. A massa mãe, transportada por volta de 1950 de Turim até São Paulo, de avião, com todos os cuidados e protecção, é a mesma guardada religiosamente até hoje na “sala do bebê” em Extrema, um bunker refrigerado com temperatura controlada. A bola de massa farinhenta está deitada sobre uma caixa metálica que lembra o berço de um recém nascido. É um fermento natural que se multiplica sozinho e que deve ser cuidado amorosamente, caso contrário pode morrer. É preciso regularmente acrescentar mais farinha e mais água. Todo cuidado é pouco, pois se a matriz morrer são necessários sete meses para refazer outra, começando com uma maçã posta para fermentar naturalmente.
“A produção do panetone é algo único e extraordinário, porque continua sendo muito manual e muito artesanal, mesmo com uma produção de 65 milhões de unidades”, explica Luigi Bauducco vestido com um avental branco e com a cabeça e os pés cobertos de tecido esterilizado, para visitar a sala do bebê. “A massa mãe se reproduz indefinidamente e está na base de tudo. É preciso cuidar dela com calma e paciência. No início de nossas operações no Brasil trabalhava conosco um confeiteiro espanhol, que no período de Natal não voltava para casa, porque tinha medo que alguém estragasse o fermento. Ele dormia ao lado da massa mãe que não aceita erros”, lembra.
Como se faz um panetone
Para fazer um panetone, é preciso misturar os ingredientes, a uva passa, o chocolate, da massa ao fermento natural. Depois de bem amassada, a massa é dividida em bolas que precisam descansar por nove horas, sempre em temperatura controlada. Retrabalha-se a massa e há novo período de descanso. A massa cresce muito nesse processo que dura 52 horas, desde o começo da fermentação até a ida para o forno.
“Os panetones feitos com fermento de cerveja ficam mais duros e não agradam ao público”, esclarece Bauducco. “O nosso panetone é mais macio e agrada mais a todos, também nos estados onde não há imigrantes e oriundos italianos. O nosso segredo é a o toque natural na elaboração”, revela.